O mês de março é lembrado pelo Dia Internacional da Mulher e muito é destacado sobre os direitos das mulheres e sua importância para a sociedade. No entanto, um assunto que também precisa ser discutido é sobre a exaustão provocada por uma maratona diária que inclui não apenas tarefas profissionais intensas, mas também a administração das demandas familiares, resultando em um fardo constante que permeia diversos aspectos da vida feminina.
O Relatório divulgado pela ONG Think Olga revelou que 45% das mulheres brasileiras têm um diagnóstico de ansiedade, depressão, síndrome do pânico ou algum outro transtorno mental, no contexto pós pandemia de Covid-19. Elas já estavam esgotadas em 2020, quando atravessaram uma das piores crises do século, continuam esgotadas em 2024 e clamam por ajuda até da Justiça.
Acúmulo de tarefas profissionais e domésticas, situação financeira apertada, dívidas, remuneração baixa, sobrecarga de trabalho, atrelados ainda às situações de violência doméstica e familiar estão entre os fatores que mais impõem sofrimento.
A defensora pública Michele Camelo, titular da 13a Vara de Família, relata que a sobrecarga das mulheres está ganhando cada vez mais notoriedade nas decisões judiciais, principalmente depois do Exame Nacional do Ensino Médio propor como tema da redação Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil.
A defensora pública revela um caso que atuou como assistente de defesa em um julgamento, realizado neste mês de março, demonstrando o ápice da sobrecarga mental que levou uma mulher ao banco dos réus depois de dez anos respondendo processo por tentativa de homicídio contra o ex-companheiro.
O fato ocorreu em 2014, à época ela estava com 22 anos, em um relacionamento permeado de violência doméstica. “O filho do casal tinha cabelos crespos e em um dos dias de convivência da criança com a família paterna, o pai cortou o cabelo do filho, supostamente ignorando todo o cuidado que a mãe tinha. Importante pontuar que estamos falando de uma mulher negra, cujo cabelo é considerado um símbolo da sua identidade. Quando a criança voltou para o convívio materno, a mãe, muito esgotada emocionalmente, retornou à casa do pai para questionar sobre o ocorrido. Foi quando eles entraram em conflito corporal, e a mulher, em uma atitude de defesa, deu um único golpe de faca no ex-companheiro, que é bem característico da legítima defesa”, conta a defensora.
A mulher ficou quatro meses presa, a criança passou a morar com uma tia materna. Depois que a mãe saiu da unidade prisional, o casal retornou ao relacionamento. Ao longo desses anos, constam duas passagens dela na Delegacia da Mulher, uma por ameaça e outra por agressão física, uma paulada que ela recebeu no rosto, mas nenhum desses processos foi para frente. Com exceção da tentativa de homicídio. Ela foi denunciada pelo Ministério Público e ficou por dez anos como ré , em uma ação de tentativa de homicídio.
O defensor público Eduardo Villaça também atuou no júri, mas coube à defensora pública Michele Camelo mostrar aos jurados quem é essa mulher.
“Mostrei o contexto de sobrecarga mental feminina. Estamos falando de uma mulher negra, com poucos recursos financeiros, mas que vende churrasquinho na feira para manter a família, órfã de pais, criada pelos avós também já falecidos, mãe de duas crianças de 8 e 11 anos de idade, sem rede de apoio, que precisa trabalhar e dar de conta de todas as obrigações domésticas que envolvem o cuidar. Um trabalho invisível, subestimado e desvalorizado porque é considerado natural. Fora isso, as conturbações de um relacionamento abusivo, com denúncias de violência física e psicológica. O processo inteiro não tem nenhuma testemunha, porque a máxima ainda é ‘em briga de marido e mulher ninguém mete a colher’. Ao final, pontuamos que ela era a vítima, conseguimos mostrar a violência sofrida por ela, a carga mental e a desigualdade de gênero dentro da família. Dessa forma conseguimos a absolvição”, conta Michele.
Essa jornada desafiadora evidencia a necessidade urgente de reconhecimento e apoio adequado para aliviar a sobrecarga mental das mulheres.
“O que vemos nos diversos processos que acompanhamos é muito desespero das mães pedindo para que os pais cumpram o papel de cuidar dos filhos. Estamos pontuando nos pedidos da Defensoria que o trabalho não remunerado materno tem que ser embutido na pensão alimentícia, mas a maioria dos pais são vulneráveis economicamente, então insistimos em uma convivência justa para que a mulher tenha mais tempo para si”, complementa a defensora pública.
A matéria tem levado a entendimentos importantes perante os tribunais. Recentemente, no Paraná, a justiça decidiu que mesmo pai e mãe em condições similares de capacidade remuneratória, caberia ao pai o maior percentual considerando o trabalho doméstico realizado pela mulher, independente da posição de trabalho, ao entender que uma mãe com filhos pequenos não consegue produzir e nem auferir a mesma renda que um homem.
A decisão do Ceará é uma vitória. “O caso de hoje fala sobre essa invisibilidade do trabalho da mulher e que precisa ser trazido aos autos judiciais. Estamos falando não só do direito formal, mas de assuntos transversais que impactam diariamente a vida de milhares de mulheres”, disse.
Fonte: Portal da Defensoria Pública do Estado do Ceará